O Silêncio das Teclas
04 jan 2025
Pedalar depois de tanto tempo foi como um reencontro com uma parte de mim que eu não sabia que ainda existia. O vento no rosto, o corpo se ajustando a um ritmo esquecido... e, por um momento, parecia que eu nunca tivesse parado. Minhas pernas sabiam o que fazer, não hesitaram. Mas, em meio a essa fluidez, algo me pesava. O contraste entre a naturalidade com que pedalo e o vazio que sinto quando penso no piano se tornou ainda mais evidente. O piano... há anos não o toco. E, há anos, as teclas não sentem mais meus dedos. Não ouço mais as notas que eram como um reflexo de quem eu sou. O piano, ao contrário da bicicleta, não me esperou. Ele não permanece como algo instintivo.
Ele se foi.
E por quê? Porque sonhos, quando não são cultivados, se tornam frágeis, desfeitos. O piano era o que eu amava, mas o amor, por mais genuíno que fosse, não bastou. O tempo escasso, o dinheiro inexistente, a falta de apoio – tudo isso fez com que o piano fosse deixando de ser prioridade. Minha família, como tantas outras, via a música como algo supérfluo, uma mera distração. Estude, trabalhe, ganhe dinheiro. Não havia espaço para algo que não se convertesse em lucro. E assim o piano, sem resistência, foi se distanciando. Não por falta de paixão, mas porque, em algum momento, o sistema que nos governa nos pede que escolhamos: e os sonhos, por mais essenciais que sejam, acabam sempre em segundo plano.
Hoje, minhas mãos já não reconhecem mais a música. As notas que antes fluíam quase sem esforço agora são estranhas, distantes. Há uma dor silenciosa em perceber o quanto algo que foi parte de mim se tornou um estranho, um eco distante de tudo o que perdi. O piano, que já foi meu refúgio, agora só me lembra do que foi arrancado de mim. Enquanto a bicicleta me acolhe, o piano me rejeita.
Essa diferença, tão sutil e ao mesmo tempo tão profunda, diz muito sobre o mundo em que vivemos. Pedalar é simples, quase trivial. Não exige mais do que uma bicicleta velha e o suficiente tempo para sentir o vento. Mas tocar piano... isso é diferente. O piano exige uma dedicação constante, uma existência em torno dele. Precisa de um instrumento caro, de um espaço próprio, de tempo, de dedicação. Precisa de apoio. Tocar piano é um luxo em um mundo onde até as nossas paixões mais legítimas se tornam mercadorias. O capitalismo nos ensina a medir nossos sonhos pela régua do que é rentável, do que dá retorno. E tudo o que não se encaixa nessa lógica... é descartado.
Não é só a minha história. Quantos mais estão condenados a viver essa realidade? Quantos, como eu, tiveram que abandonar suas paixões porque o dinheiro não vinha ou porque suas famílias não viam valor no que faziam? Não é só cruel. É desumano. Reduzir nossas vidas ao que é útil para o mercado é nos roubar a possibilidade de sermos completos, de sermos inteiros.
O piano, para mim, nunca foi apenas um instrumento. Era uma forma de conexão comigo mesma, de expressar aquilo que palavras nunca foram capazes de alcançar. Era uma forma de liberdade. E perder isso foi como perder uma parte de mim. Ainda consigo lembrar de algumas melodias, de como era sentir cada nota vibrar no ar, como se fossem pedaços de mim sendo espalhados no espaço. Mas essas lembranças... são como fotografias desbotadas. Bonitas, sim, mas cheias de dor. Porque me lembram de algo que não posso mais ter.
Enquanto pedalava, não pude deixar de me perguntar: e se tocar piano fosse como andar de bicicleta? E se o tempo não tivesse apagado o que eu aprendi? E se, ao tocar as teclas, ainda fosse possível sentir a mesma familiaridade com que meus pés encontram os pedais? Mas não é assim. Tocar piano exige esforço, dedicação. Algo que, em algum momento, não pude sustentar. E essa é uma cruel realidade: o mundo só valoriza o que não exige tanto de nós. O que não demanda sacrifício. E o resto, o que exige mais, é deixado de lado.
A bicicleta me trouxe de volta uma parte do que sou. Mas o piano... o piano me lembra do que perdi. E essa perda não é só minha. Ela é coletiva. É o preço que todos nós pagamos por viver em um mundo que coloca o lucro à frente das pessoas. Eu não esqueci como pedalar. Mas o piano, o piano me esqueceu. E isso... isso é mais do que uma metáfora. É um grito. Um grito contra um mundo que não deveria ser assim.
Enquanto pedalava, sentia o vento no rosto e pensava no piano. Pensava em como seria justo viver em um mundo onde nossos talentos e paixões não fossem sufocados pela necessidade de sobreviver. Pensava em um mundo onde tocar piano fosse tão simples quanto pedalar – algo que nunca se esquece, algo que nunca nos abandona. E eu pensava, com toda a força de quem ainda resiste: é por isso que continuo lutando. Porque, um dia, quero viver em um mundo onde ninguém precise abandonar o que ama.